sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Luis Lobianco se pronuncia após ataques por peça sobre trans em Belo Horizonte: 'Estou exausto'

O ator Luis Lobianco, do Porta dos Fundos e do Vai que Cola (Multishow), pronunciou-se após sofrer ataques referentes à encenação na peça “Gisberta”. Como anunciou o colunista Ancelmo Gois nesta semana, a peça foi alvo de protestos por parte da comunidade trans de Belo Horizonte, que alega que o monólogo deveria ser encenado por uma atriz transexual, e não por um "trans fake". Em seu Facebook, Lobianco falou pela primeira vez sobre o episódio:

“Na semana da reestreia fui contactado por uma representante do grupo Transvest de BH com o intuito de dialogar representatividade e empregabilidade. Por que uma peça que fala sobre a marginalidade que a sociedade impõe às pessoas trans não tem nenhum T em sua equipe? Acho a provocação muito pertinente e um ponto de partida para discutirmos a profissionalização dessas pessoas mas, também, ter consciência do modo arcaico de se fazer esse tipo de teatro no Brasil (...) ‘Gisberta’ um projeto idealizado por mim quando tomei conhecimento de sua história. Chocou-me saber que quando sua morte completou 10 anos nenhum artista trans ou cis desenvolvia uma pesquisa teatral profissional sobre o crime no Brasil”, disse, no início do texto.

O ator continuou o desabafo mencionando como foi a captação de recursos para a realização da peça e citou a "realidade do teatro carioca em 2017" descrevendo: "Crivella na prefeitura num embate declarado contra as artes e nossa classe desesperada com seus projetos na mão à caça dos editais". Lobianco explica ainda que, ao elaborar o projeto, contou com os serviços de uma advogada trans, que os ajudou a ter conhecimento sobre o assunto. Em seguida, o artista opinou sobre o o adjetivo usado para classificá-lo:

"Vieram outros questionamentos por parte do grupo: eu CIS interpretando “transfake”, gays falando de trans, Gisberta ser interpretada. Ainda aqui, mesmo eu não concordando com muitos dos seus pontos de vista, cabe o diálogo. E o teatro não seria a arte do “fake”? (...) O que não cabe mesmo é a comparação com o “blackface” por respeito a outros movimentos e à simbologia desta prática. Para todas as outras questões vamos precisar de muito tempo pra entender. O teatro é milenar e esse questionamento só chegou na classe teatral recentemente. Não é uma matemática. Não tem uma resposta só. Vamos ter que fazer muitas peças e conversar muito pra entender. Estou disponível (...) Como ator assumidamente gay e realizando trabalhos com LGBTs me senti apto a contar essa história. Por uma questão de escolhas dramatúrgicas, a pesquisa caminhou para que eu não interpretasse a Gisberta como personagem da peça. Para tratar de sua ausência criamos um mosaico de personagens fictícios e reais que observam o seu lugar de fala e nunca o assumem".

Luis Lobianco lembra, em seu texto, que em todas as capitais pelas quais a peça passou, o debate foi levado a público. Em seguida, o ator admite estar com dificuldades perante algumas brigas:

"Estou exausto. Questionando se levo adiante futuros projetos com essa temática. Questionando se vale a pena trabalhar tanto usando os meus privilégios a favor de um causa, mirando em um dia ter condições de criar empregos para LGBTs, se na construção desse caminho há tanta difamação".


Esclarecimentos sobre o espetáculo GISBERTA e os protestos em Belo Horizonte. Essa é a minha primeira e única manifestação pública sobre o assunto até aqui.

Em 05 de janeiro de 2018 GISBERTA reestreou em Belo Horizonte. A peça já tem quase um ano de estrada e arrebata casas lotadas por onde passa. É lindo ver o público LGBT presente mas, também e principalmente, o além da nossa bolha de entendimento transformando a consciência pelo teatro. Além de estar em algumas listas de melhores do ano e indicado a alguns prêmios, o espetáculo ganhou um importante reconhecimento da Organização da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo - a maior do mundo - o Prêmio de Cidadania em Respeito à Diversidade 2017 na categoria Artes Cênicas.

Em contraponto, em BH o projeto foi questionado quanto à sua legitimidade, por movimentos de artistas transexuais e travestis. As reações foram as mais diversas - algumas pacíficas, outras questionáveis. Importante dizer que movimentos e pessoas trans estiveram nas nossas plateias e debates ao longo desse ano de apresentações, uma contrapartida do projeto, e o retorno é sempre positivo e de alto reconhecimento do nosso trabalho.

Na semana da reestreia fui contactado por uma representante do grupo Transvest de BH com o intuito de dialogar representatividade e empregabilidade. Por que uma peça que fala sobre a marginalidade que a sociedade impõe às pessoas trans não tem nenhum T em sua equipe? Acho a provocação muito pertinente e um ponto de partida para discutirmos a profissionalização dessas pessoas mas, também, ter consciência do modo arcaico de se fazer esse tipo de teatro no Brasil.

GISBERTA foi um projeto idealizado por mim quando tomei conhecimento de sua história. Chocou-me saber que quando sua morte completou 10 anos NENHUM artista trans ou cis desenvolvia uma pesquisa teatral profissional sobre o crime no Brasil. O conteúdo artístico mais significativo sobre o fato era a música “Balada de Gisberta” do português Pedro Abrunhosa, depois gravada por Maria Bethânia. Decidi ali que eu deveria fazer alguma coisa e não esperar iniciativas que poderiam nunca vir. E o teatro, que é a minha casa, dá conta de todas as histórias. É o berço da democracia.

Cabe dizer que Pedro Abrunhosa é também um homem cisgênero e sua composição - obra artística tal qual uma peça de teatro - mesmo cantada em primeira pessoa, se tornou um hino no combate à transfobia e trouxe luz à história de Gisberta.

A realidade do teatro carioca em 2017 era a seguinte: Crivella na prefeitura num embate declarado contra as artes e nossa classe desesperada com seus projetos na mão à caça dos editais. Chamei meu marido e 3 amigos para levar a ideia a diante (Lúcio Zandonadi, Claudia Marques, Renato Carrera e Rafael Souza-Ribeiro). Meu marido chamou dois amigos músicos. Meu diretor, Renato, chamou o marido programador visual que chamou a amiga fotógrafa. E assim fomos montando a equipe de parceiros que podíamos, sem um tostão, quem topava trabalhar de graça. Essa é a realidade do teatro no Brasil quando se opta por não fazer um teatro mais comercial. Respeito e faço todos os gêneros teatrais mas, quem entende minimamente do assunto, sabe que não é falando de tragédias LGBTs que se tem facilidades e se pode abrir testes pra contratar pessoas.

Naquele momento, chegamos em GIOWANA CAMBRONE (mulher trans, atriz, advogada com atuação nas matérias de direito civil e público, Professora Universitária, ativista de Direitos Humanos) que prestou consultoria sobre o tema durante a pesquisa do espetáculo e sem o seu conhecimento seria impossível qualquer abordagem.

Precisamos cobrar a formação técnica de pessoas trans das grandes instituições e nos apresentarmos para esse trabalho. Cobrar de bancos, seguradoras, estatais, grupos de comunicação a criação de núcleos de formação. O teatro na sua crise não dá conta disso sozinho! Vale lembrar que com todas as precariedades já existentes, a classe teatral carioca levou um calote do prefeito pastor no fatídico 2017.

Eu e minha equipe de amigos e familiares seguimos trabalhando por 9 meses sem ganhar nada e sem previsão de estreia. Por fim, salvos pelo gongo, fomos acolhidos pelo edital do Banco do Brasil e pudemos realizar a peça com estreia prevista em 3 capitais. Um dinheiro que nos deu a maravilhosa chance de fazer uma peça de alta qualidade mas, em sua contrapartida, a preços populares. Ninguém lucra. Seguimos com a nossa convicção na importância dessa história.

Vieram outros questionamentos por parte do grupo: eu CIS interpretando “transfake”, gays falando de trans, Gisberta ser interpretada. Ainda aqui, mesmo eu não concordando com muitos dos seus pontos de vista, cabe o diálogo. E o teatro não seria a arte do “fake”? O plano harmônico das verdades e mentiras? Em 24 anos de carreira já fiz velho fake, mulher fake, criança fake, até escandinavo fake eu já fui! O que não cabe mesmo é a comparação com o “blackface” por respeito a outros movimentos e à simbologia desta prática. Para todas as outras questões vamos precisar de muito tempo pra entender. O teatro é milenar e esse questionamento só chegou na classe teatral recentemente. Não é uma matemática. Não tem uma resposta só. Vamos ter que fazer muitas peças e conversar muito pra entender. Estou disponível.

Como ator assumidamente gay e realizando trabalhos com LGBTs me senti apto a contar essa história. Por uma questão de escolhas dramatúrgicas, a pesquisa caminhou para que eu não interpretasse a Gisberta como personagem da peça. Para tratar de sua ausência criamos um mosaico de personagens fictícios e reais que observam o seu lugar de fala e nunca o assumem. Além disso, a peça fala ainda das diferenças entre orientação sexual e identidade de gênero. Misturo minhas histórias e histórias da minha equipe ao que foi contado pela família de Gisberta quando nossa pesquisa chegou até ela. Sim, as irmãs de Gisberta nos apoiam 100%, assim como a apoiavam irrestritamente em vida. Sim, a família de Gisberta ofereceu a maior parte do material que temos, nos recebeu com memórias, confiança, documentos e estava na estreia. Temos contato diário na trajetória do espetáculo e nas palavras delas “Agora é tempo de alegria na nossa vida. O teatro faz justiça”.

Vale dizer, que anterior a esses pedidos, é da contrapartida do projeto o debate em todas as capitais que passamos. Fazemos uma noite de conversa sobre arte e gênero aberta ao público com representantes dos movimentos trans. O encontro de BH já estava sendo anunciado.

Houve um diálogo com a mediação do Transvest até às vésperas da estreia. Chegamos a falar sobre apresentação conjunta de uma cena deste coletivo e também num encontro com um representante dos movimentos, mas não chegamos a um acordo porque era fundamental que a peça fosse assistida antes de ser debatida.

Estou exausto. Questionando se levo adiante futuros projetos com essa temática. Questionando se vale a pena trabalhar tanto usando os meus privilégios a favor de um causa, mirando em um dia ter condições de criar empregos para LGBTs, se na construção desse caminho há tanta difamação.

Falando em privilégios, não vem ao caso dizer o quanto eu briguei pelo meu espaço, nunca tive vocação pra ser vítima e confio minhas muitas tragédias a poucos amigos. O fato é que conquistei o respeito da minha classe e tenho prudentemente uma assessoria de imprensa para as demandas do que movimento. O privilégio seria acionar isso tudo desde o início para expor o meu lado, mas me mantive quieto, observando e tentando entender. Mesmo sendo apontado, vilanizado, tachado de omisso. Observando muita gente falando contra mim sem cogitar que poderia haver outro lado da história.

Somos todos artistas. Por que não lutar por mais espaço pra todos? Vamos gastar mesmo tanta energia contra aliados? LGBTs contra LGBTs mesmo quando há tantos inimigos lá fora torcendo pra que a gente se destrua e poupe o trabalho deles?

Recebi apoio espontâneo de muita gente lúcida nos últimos dias. Artistas trans, classe teatral, profissionais trans da ONU, juíza cis ligada às causas de direitos humanos, o público de Gisberta, o público de BH, travestis em situação de prostituição.... muitas palavras que me abrandaram o coração e deram conta dos meus dias. Mas, por respeito, selecionei a fala da minha amada Jane Di Castro, a Divina Diva, para ilustrar a potência de um fazer teatral:

“O melhor monólogo do momento que conta a história de uma trans com seus dramas e glamour. Em algumas cenas passava um filme na minha cabeça. Enfrentei a ditadura e estou aqui, eles não me venceram, perdi as contas da quantidade de peças que fiz nessa época que foi a mais difícil, sempre trabalhei. Era proibido ser travesti na rua. Hoje sou até síndica do meu prédio, há 10 anos. Rogéria fez uma bisavó numa novela. Recentemente tivemos uma atriz trans numa novela interpretando uma mulher CIS. Já pensou se as atrizes se reunissem e fizessem um protesto contra elas? No final de GISBERTA fui homenageada e me emocionei. Texto e direção perfeitos. Imperdível!”Jane é atriz, cantora, empresária, Divina Diva e trans. Deveria ser óbvio saber quem é a Jane, mas por motivos de “o mundo estar ao contrário” é melhor manter a legenda. Vou publicar outro texto só com as falas de mais gente amiga trans e cis que mandou seu apoio

Ainda acredito no diálogo, nas forças LGBTs unidas contra o conservadorismo crescente - prestes a eleger um presidente em 2018 - e nunca vou questionar o poder da arte. Para quem quiser conversar de forma honesta e equilibrada, estou aqui.

Convoco vocês, pessoas sensatas e que mobilizam tanta gente, um posicionamento, uma defesa da arte, do teatro, da liberdade. Chamo a classe artística para uma tomada de ação. O que está acontecendo com GISBERTA pode acontecer com outros artistas em seus projetos. Pode ser um parágrafo, uma publicação, uma linha, qualquer coisa ajuda. Não sei até onde posso levar esse trabalho nessas circunstâncias. Estou convicto que se a peça GISBERTA parar toda nossa classe perde. Peço ajuda!

Uma curiosidade: nas últimas apresentações um grupo de religiosos, cientes da temática da peça, convidava o público que saía do teatro para os cultos em seus templos. É óbvio que a abordagem não era em vão.

Muito obrigado,
COMPARTILHEM,
Luis Lobianco


Gisberta - Em matéria aqui no blog na série sobre violência contra a mulher, contamos a história da  Gisberta Salce, mulher trans brasileira assassinada em Portugal aos 45 anos depois de uma vida marcada pela descoberta da identidade trans, o sucesso na Europa, o envolvimento com drogas, o vírus HIV e a indigência. Fugiu da transfobia e da violência no Brasil mas encontrou a violação, a tortura e a morte em Portugal, em fevereiro de 2006.


Com informações do Jornal Extra (Rio), do facebook do ator Luís Lobianco e de Arquivo