segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Grávida aos 10 anos e obrigada a se casar com o próprio estuprador

Ostentando um visual clássico, com um vestido roxo longo e um casaco cinza-claro, séria, mas amável, Sherry Johnson (na foto aos sete anos, antes de sofrer os abusos), uma mulher que fala com frases curtas e sem rodeios, começa a entrevista resumindo a sua história, que é como uma martelada na testa: “O primeiro que me estuprou foi o bispo da igreja. Eu tinha oito anos. Aos oito o meu padrasto também me estuprou. Aos nove quem me estuprou foi o diácono, e engravidei. Aos 10 tive uma menina dele, e aos 11 minha mãe me obrigou a casar com ele. Com meu estuprador”.


“Continuo me perguntando como pude ter uma filha aos 10 anos de idade”, diz Johnson, de 58 anos, que hoje trava uma batalha pela proibição, sem exceção, dos casamentos de menores de idade nos Estados Unidos. No gabinete de um congressista em Tallahassee, capital da Flórida, a “sobrevivente e ativista”, como se define, continua recordando. “Quando descobrimos que eu estava grávida, minha mãe jogou a culpa em mim: ‘Como você pôde me fazer algo tão horrível?’. Para ela, o mais importante era a igreja e seu prestígio dentro da comunidade”, conta.

Mal se lembra da sua infância antes dos estupros. Apenas que era uma menina feliz, que gostava da escola e de algodão-doce. Sua memória dos oito anos em diante é “um buraco de dias e dias cuidando das crianças e chorando sozinha. Um pesadelo infinito”, diz. “Quando me perguntam como foi, respondo: ‘As meninas têm bebês de brinquedo. Eu fui uma menina que teve bebês de verdade’”.

Johnson prossegue com a cronologia de suas seis primeiras gestações, todas com o diácono, que tinha 19 anos na primeira vez que a estuprou. É de uma brutalidade que aturde. “Minha primeira menina eu tive aos 10; aos 13, o meu primeiro menino; outro aos 14, outra aos 15, e outro aos 16. Aos 17 fiquei grávida outra vez, me divorciei do meu estuprador, e semanas depois tive a última menina dele.” Seu marido forçoso quase não conviveu com a família. Abandonava-a assim que a adolescente engravidava, e só retornava para fazer mais um filho com ela.

Depois dele, Johnson casou-se e divorciou-se mais duas vezes. Com o segundo marido teve três filhos. Tanto este como o terceiro a submeteram a abusos, afirma. “O segundo tentou passar por cima de mim com sua caminhonete.” Johnson não diz os nomes de seus maridos, do seu padrasto e do bispo, já falecido e que tinha uns quarenta anos quando a estuprou. “Os EUA são o país dos processos judiciais”, diz. “E eu não quero passar por mais isso. A única coisa que eu quero é que meu depoimento sirva para que nenhuma menina ou adolescente sofra o que sofri. Que haja de uma vez por todas leis que evitem isso.”

Sua família frequentava uma igreja pentecostal de Tampa (Flórida). Ao engravidar, os serviços sociais iniciaram uma investigação, mas sua mãe e o bispo, para blindar a congregação, decidiram casá-la. A menina perguntou à mãe: “O que é casar?”. A mulher não respondeu. Levou-a a um tribunal de Tampa para iniciar os trâmites matrimoniais, mas o juiz se recusou. Foram então a outro condado, Pinellas, onde “um juiz mais velho” aceitou casá-la.

A cerimônia aconteceu na igreja do bispo e do diácono que a haviam estuprado. Uma quarta-feira à noite, depois da celebração religiosa. “Minha mãe me fez o vestido, o véu e o bolo.” Quase nenhum paroquiano ficou para assistir ao enlace. Aquela menina não voltou mais para a escola. Corria o ano de 1970.

Nem na época nem agora, 47 anos depois, havia lei nos EUA que proibisse completamente os matrimônios de menores de 18 anos. Ainda hoje, 27 Estados norte-americanos os permitem sem limite de idade por motivos como idiossincrasias religiosas ou culturais ou gravidez da menor, e em geral apenas com o consentimento paterno e autorização judicial. A principal potência do mundo ainda não resolveu um problema que persiste em nível internacional, sobretudo nos países em desenvolvimento, onde uma de cada quatro mulheres se casa antes dos 18, e uma em cada nove antes dos 15. O Níger, na África subsaariana, é o país do mundo com a maior proporção de menores nas cerimônias nupciais (76%). Na Ásia, o ranking regional é liderado por Bangladesh, com 65%, segundo as Nações Unidas.

Sherry Johnson participa de uma campanha da ONG Unchained at Last(“finalmente sem correntes”) que busca estimular os deputados estaduais dos EUA a proibirem o casamento precoce. Segundo dados obtidos pela ONG, de 2000 a 2010, em 38 dos 50 Estados dos EUA casaram-se 167.000 menores de 18 anos. A maioria era composta de adolescentes, embora tenham sido registrados casos envolvendo meninas de 12 anos. Na Flórida, ainda em 2012 houve três casos de adolescentes de 14 anos casadas com rapazes na faixa dos 20.

“É triste, mas o casamento de menores continua sendo um problema nos EUA. São as mesmas lacunas jurídicas que tornaram possível que Sherry se casasse na época”, diz Fraidy Reiss, diretora da organização. “Às vezes, as famílias acreditam que o correto é casar suas filhas por causa da sua tradição; outras vezes porque ela está grávida, mesmo que tenha sido estuprada. Eventualmente, também se faz isso para que um homem de outro país consiga visto para entrar nos EUA. Há muito tempo os legisladores ignoram o assunto.”

Johnson conta que mais de uma vez se encontrou com políticos da Flórida que desconhecem a realidade. “Puxa, casamentos de menores? Isso não acontece na Flórida, não é permitido!”, parafraseia a ativista. “E explico a eles que é possível. Tanto é que eles têm uma sobrevivente na frente deles.”

Em 2013 Johnson publicou suas memórias, Forgiving the Unforgivable(“perdoando o imperdoável”), em que substituía os nomes dos protagonistas, mas narrava sua história real. Como a manhã em que, aos oito anos, o bispo a estuprou. Dois minutos de terror em que a menina, conforme conta no livro, “fechou os olhos enquanto repetia em sua cabeça o salmo 23”. Sem saber exatamente o que haviam feito com ela, mas sentindo-se destroçada, saiu da casa do bispo e foi para a escola. “Foi horrível. Sozinha, sem ninguém ao meu lado, caminhando por um beco até o colégio”, relembra. Nenhum de seus filhos quis ler o livro. “Não podem suportar”.

Em Tallahassee, onde Johnson vive hoje, tem lugar uma batalha crucial no combate ao casamento infantil. Em 2018, o Congresso estadual deve votar um projeto de lei, apresentado neste ano, que faria da Flórida o primeiro Estado dos EUA a barrar 100% os enlaces de menores de idade. A Flórida foi o segundo Estado dos EUA com mais casos de casamentos de crianças e adolescentes entre 2000 e 2010 (14.278 ocorrências), atrás do Texas (34.793), e é um dos que não especificam limite de idade para o matrimônio em caso de gravidez. Isso leva, por exemplo, os homens do vizinho Estado da Geórgia, onde as uniões de menores de 16 são proibidas sem exceções, a atravessarem a divisa e irem até o município de Escambia, já na Flórida, para se casarem com as meninas. Os Estados com o maior índice de casamentos de crianças e adolescentes são Kentucky, Arkansas e Idaho, com amplas zonas rurais e comunidades ultraconservadoras. Há duas semanas, no Alabama, um funcionário público defendia o candidato ao Senado Roy Moore da acusação de ter abusado de uma garota de 14 anos quando ele tinha 32. “Maria era uma adolescente, e José, um carpinteiro adulto, e foram pais de Jesus”, argumentou.

Se na Flórida os congressistas transformarem em lei o veto absoluto ao casamento de menores — em outubro, um comitê do Senado estadual aprovou por unanimidade esse projeto de lei —, os ativistas esperam que seja a primeira peça de um efeito-dominó para acabar com o problema em nível nacional. Isso seria congruente com a descrição, feita pelo próprio Departamento de Estado dos EUA, do matrimônio infantil como uma violação dos direitos humanos e com a lei federal que classifica como estupro o sexo de um adulto com um menor de idade.

Johnson mora sozinha numa casa térrea, pouco iluminada, mas aquecida, com bonitos quadros com temática afro-americana e, numa das paredes, uma legenda que diz: “Uma casa só é um lar quando há amor”. Assim que o visitante entra, fareja um guisado saboroso. Com um trabalho como professora durante a semana e outro como cuidadora de idosos aos sábados e domingos, além de sua intensa atividade como ativista, encontra tempo para a cozinha, seu passatempo “e terapia”, e prepara um livro com suas melhores receitas, intitulado O Livro de Cozinha da Mema (como a chamam seus 34 netos e dois bisnetos).

Dias antes da entrevista, que teve lugar num dia outonal e ensolarado do começo de novembro em Tallahassee, uma pequena cidade administrativa e universitária, Sherry Johnson havia recebido um telefonema enquanto dirigia. Do outro lado, escutou palavras inesperadas. Comovida, precisou frear o carro e parar no acostamento. Era sua mãe, de 78 anos, com quem sempre manteve contato, mas que nunca até então havia lhe dito o que acabava de dizer: “Filha, me perdoe”.

El País