sexta-feira, 5 de maio de 2017

Os 100 anos de Dalva de Oliveira



“Um dia as pessoas vão descobrir que Dalva de Oliveira é a nossa Billie Holiday”. A frase dita por Elis Regina na década de 1970 talvez não comova tanto as gerações atuais, cuja referência mais próxima da intérprete de “Bandeira Branca”, “Ave Maria Do Morro” e “Errei, Sim”, é a atuação de Adriana Esteves na minissérie “Dalva & Herivelto – Uma Canção De Amor”, transmitida pela Globo em 2010. Bernardo Martins, 36, neto da artista – ele é filho do também cantor Pery Ribeiro (1937 - 2012) – está disposto a mudar essa história e conta com bons argumentos a seu favor. Para o documentário que ele realiza em comemoração ao centenário da cantora, com previsão de lançamento para o mês de outubro – Dalva nasceu num dia 5 de maio, há um século – o cineasta entrevistou desde nomes consagrados da cultura nacional até um garoto de 13 anos, morador da periferia carioca e fã absoluto da estrela do filme. “É um menino chamado Júnior Viana, que descobriu a obra da minha avó quando tinha 7 anos e não quis mais saber de outra coisa. Mandamos um táxi percorrer uma distância enorme só para ele participar das filmagens, tamanha a importância desse depoimento. Ele nos confidencia que não gosta de música moderna, só quer ouvir Dalva de Oliveira”, informa Martins.

Na visão do diretor, o fato “comprova a força da música feita com verdade”. “Uma das coisas mais tocantes que entendi no decorrer de todo esse processo de mergulho e transformação é que, para a minha avó, não existia separação entre a artista e a pessoa que ela era no dia a dia. Havia uma entrega total ao ofício, e me identifiquei muito, percebi melhor quem eu sou, de onde eu vim, porque me comporto de certas maneiras, foi tudo muito bonito e libertador. Chorei várias vezes durante as filmagens”, confessa. Martins afirma que a emoção vinha das histórias que as pessoas contavam. “Algumas, inclusive, conviveram muito pouco com ela, mas ainda assim foram tocadas por sua música e a maneira de transmitir os sentimentos”, constata.

Entrevistados. Dos nomes de maior vulto com quem o cineasta conversou, destacam-se Ney Matogrosso, Alcione, Paulo Ricardo, Adriana Esteves, Lucinha Araújo (mãe de Cazuza, admirador confesso da homenageada), Ricardo Cravo Albin, Rodrigo Faour e Maria Bethânia, para quem Dalva sempre serviu como referência, tanto que Bethânia regravou vários clássicos do repertório da artista ao longo da carreira. Ela ainda declarou, na mesma década de 1970, quando Dalva amargava o ostracismo, que ela era “o único mito de enlouquecer que existiu no Brasil, intocável”.

Outro entrevistado de peso que comparece é o cantor Léo Jaime. Segundo Martins, o fato de Léo ser muito articulado contribuiu para que o documentário captasse outras camadas da vida de sua avó. “Ele nos mostrou um lado da Dalva que é muito pouco valorizado; muitas pessoas têm a ideia de que ela foi uma mulher submissa o tempo todo, e isso não corresponde a toda a verdade. Claro que ela teve esses momentos, mas foi também uma mulher corajosa, que quebrou tabus, foi desquitada numa época em que isso ainda era um absurdo, se casou com homens muito mais jovens. Além de questões mais delicadas, como o fato de ela ter sido ‘criada’ artisticamente por meu avô, Herivelto Martins, com quem ela viveu um casamento muito atribulado, e, em termos de reconhecimento de crítica e público, tê-lo superado – ou seja, a ‘criatura’ que passa o ‘criador’. Tudo isso quem trouxe foi o Léo Jaime”, elogia.

Embora não tenha feito objeções a nenhum assunto sobre o qual os entrevistados quisessem falar, Bernardo Martins admite que procurou “manter o foco sobre Dalva”: “Ela é a protagonista, não queria que o foco ficasse só sobre a relação dela com o Herivelto. Essa foi uma fase da vida dela, marcante, importante, mas não foi a única, ela passou por muitas coisas além disso”.

Formato. Martins também procurou inovar no formato, que ele define como “documentário não ortodoxo”. “Além de entrevistas e imagens de arquivo, eu vou participar recitando um monólogo poético dentro de um teatro vazio”, revela.

Elis Regina, Maria Bethânia, Wanderléa, Marisa Monte, Linda Batista, Leny Andrade, Célia e Dóris Monteiro a colocam no rol de suas referências, inclusive as que apresentam estilo que se distingue da interpretação derramada e entregue de Dalva de Oliveira. “Eu não me parecia nada com a Dalva, minha voz era pequena e suave. Mas escutava ela cantando no rádio e me formei por meio daquele repertório bonito, romântico, de extremo bom gosto”, relembra a cantora Dóris Monteiro, 82, que aos 13 cantou para uma plateia restrita, formada só pela mãe e a vizinha, a música “Caminhemos”, sucesso de Dalva na época, composta por Herivelto Martins. “Cantei do meu jeito, e dali minha mãe me levou escondida para o programa ‘Papel Carbono’, da rádio Nacional, já que meu pai era contra”, confessa.

Já a cantora Claudette Soares, 79, a enfileira junto a outros nomes que marcaram seu início de carreira. “Quando via Dalva de Oliveira, Elizeth Cardoso, Maysa e Nora Ney no auditório da rádio Nacional, eu ficava enlouquecida e dizia pra minha mãe: ‘eu quero ser isso’”, rememora. Claudette diz, sem modéstia, que essa “imediata identificação veio pela beleza e elegância daquela música verdadeira”. “O que eu faço é cantar os sentimentos com sentimento, e isso aprendi, muito bem, com minhas divas”, relata.

Legado. Além de um festival com seu nome na cidade em que nasceu, Rio Claro, no interior de São Paulo, Dalva de Oliveira vai ganhar, com a comemoração de seu centenário, uma biografia por Paulo Henrique de Lima, historiador baiano com residência fixada em Congonhas (MG). O trabalho de pesquisa realizado por Lima, inclusive, serviu como base para o documentário dirigido pelo neto da artista, Bernardo Martins.

Apesar de tais iniciativas, Martins não acredita que Dalva tenha “o reconhecimento devido”. “Ela é muito mal aproveitada no Brasil, mas esse não é um ‘privilégio’ dela, infelizmente tratamos muito mal nossa cultura. Ela tem canções belíssimas, que poderiam ser utilizadas em um contexto moderno, em trilhas de filmes, novelas, várias manifestações culturais, se houvesse sensibilidade por parte das pessoas que determinam o andamento desses produtos”, avalia.

Martins conta que até hoje encontra pessoas que se sentem “emocionadas ao saber de nosso parentesco”. “As pessoas tocam em mim como se estivessem tocando nela, tenho a impressão que para elas é a maneira mais próxima de se aproximar da Dalva”, diz. Ele começou a pensar em homenagear sua avó quando colheu depoimentos de amigos para o aniversário do pai, o também cantor Pery Ribeiro, há oito anos. “Percebi que todas as pessoas falavam da Dalva e tinham muitas coisas para dizer, coisas essenciais, com substância. Meu pai era completamente apaixonado por minha avó. A grande tristeza desse filme, infelizmente, é a ausência de meu pai”, lamenta.

Pery faleceu em 2012, aos 74 anos, vítima de um infarto. “Meu pai nunca conseguiu ouvir gravações da Dalva depois que ela morreu, e eu não entendia na época. Agora eu entendo, também não consigo ouvi-lo”, diz.

TRAJETÓRIA

1936 - Forma o Trio de Ouro com Herivelto Martins e Nilo Chagas

1938 - Grava com Francisco Alves o samba “Brasil” e a “Valsa da Despedida”

1942 - Lança os sucessos “Praça Onze” e “Ave Maria do Morro”

1945 - Com Carlos Galhardo grava a versão brasileira feita por Braguinha para o infantil “Branca de Neve”

1951 - Após deixar o Trio de Ouro é eleita Rainha do Rádio e enfileira sucessos

1952 - Já em carreira solo destaca-se com a gravação do baião “Kalu”

1970 - Lança “Bandeira Branca”, o último sucesso


Assista um de seus sucessos, "Ave Maria no Morro"

 


O Tempo (MG)