quinta-feira, 9 de março de 2017

Justiça rejeita denúncia da presa política Inês Etienne

A Justiça Federal em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, rejeitou a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra Antonio Waneir Pinheiro Lima, conhecido como Camarão, pelo estupro da ex-presa política Inês Etienne Romeu (1942-2015), única sobrevivente da unidade clandestina de tortura da ditadura militar conhecida como Casa da Morte.

O processo é de 2016 e a decisão foi publicada na quarta-feira (8). Na justificativa, o juiz Alcir Luiz Lopes Coelho cita a Lei nº 6.683/1979 (Lei da Anistia, para "crimes políticos ou conexo com estes" entre 1961 e 1979) e um decreto de 1895, afirmando que anistia, uma vez concedida, é irrevogável e assumida como direito adquirido.

"O denunciado é acusado de ter cometido, entre 01/06/1971 a 20/07/1971, crimes relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política", diz o juiz na decisão.

O magistrado argumenta que desrespeitar a anistia "ofende a dignidade humana" e que o crime estaria prescrito, portanto, estaria com a punibilidade duplamente extinta.

Ele ressalta que "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu" e que, no caso, a denúncia faz o oposto, retroagindo para "prejudicar o acusado".

Coelho diz ainda que não há provas documentais dos fatos, apenas reportagens, entrevistas, "sentenças proferidas por tribunais de organismos estrangeiros" e que a depoente prestou queixa apenas 8 anos após o ocorrido.

Por fim, o juiz argumenta que Inês foi condenada na época da ditadura e cita o filósofo de discurso conservador Olavo de Carvalho. "Ninguém é contra os 'direitos humanos', desde que sejam direitos humanos de verdade, compartilhados por todos os membros da sociedade, e não meros pretextos para dar vantagens a minorias selecionadas que servem aos interesses globalistas".

Pelas redes sociais, um dos autores da denúncia, o procurador da República no Rio de Janeiro Sérgio Suiama, classificou a decisão como "o terceiro estupro de Inês Etienne Romeu", destacando que a "lamentável sentença" foi publicada no Dia Internacional da Mulher e que o estupro dela não foi investigado até 2013.

"Graças à ordem judicial de busca e apreensão, pedida e cumprida pelo MPF na casa do coronel já falecido Paulo Malhães, foi possível, após quase três anos de investigações, descobrir a verdadeira identidade de 'Camarão', o militar Antonio Waneir Pinheiro Lima".

Suiama sustenta que "a decisão judicial ignora ou desqualifica todas as provas obtidas", inclusive a palavra da vítima, "dizendo que o fato só foi relatado após 8 anos do ocorrido, como se fosse possível à vítima ir a uma delegacia de polícia em 1971 registrar queixa contra os militares que a violentaram e torturaram".

A única certeza do magistrado volta-se contra a vítima, por ele qualificada como uma terrorista perigosa, condenada pela Justiça Militar da ditadura a 10 anos de prisão por sequestro seguido de morte.

Sobre a citação de Olavo de Carvalho, o procurador diz que "como se trata de uma ação penal por crime de estupro, imagina-se que a 'vantagem' à 'minoria selecionada' seja o direito de todas as mulheres de não sofrerem violência sexual".

Segundo Suiama, o MPF vai recorrer da sentença.

Leia a nota do Ministério Público:

Nota pública

A Câmara Criminal do Ministério Público Federal também se pronunciou sobre a sentença. Em nota, o órgão lembrou que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) já afastou o argumento de anistia e prescrição para esse tipo de crime.

"O Ministério Público Federal, por intermédio de sua Câmara de Coordenação e Revisão em Matéria Criminal, lamenta veemente tal concepção, pois nenhuma mulher, ainda que presa ou condenada, merece ser estuprada, torturada ou morta. E tampouco pode o sistema de justiça negar desta maneira a proteção da lei contra ato qualificado no direito internacional como delito de lesa-humanidade".

Segundo a nota, o MPF aguarda que o Tribunal Regional Federal da 2ª Região "reforme a decisão teratológica, permitindo que os fatos denunciados sejam devidamente provados no âmbito de um devido processo legal, sempre negado aos que se opuseram ao regime ditatorial".

A nota é assinada pela coordenadora da Câmara Criminal, subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen.

Violência

Inês Etienne Romeu tinha 29 anos e trabalhava como bancária em Belo Horizonte quando foi presa, em bancária, presa em São Paulo, no ano de 1971. Ela foi a única sobrevivente entre os presos políticos que passaram na "Casa da Morte". Sua história foi relatada no documentário  Que bom te ver viva

“Fui conduzida para uma casa em Petrópolis. O dr. Roberto, um dos mais brutais torturadores, arrastou-me pelo chão, segurando-me pelos cabelos. Depois, tentou me estrangular e só me largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e deram-me pancadas na cabeça. Fui espancada várias vezes e levava choques elétricos na cabeça, nos pés, nas mãos e nos seios. O ‘Márcio’ invadia minha cela para ‘examinar’ meu ânus e verificar se o ‘Camarão’ havia praticado sodomia comigo. Esse mesmo ‘Márcio’ obrigou-me a segurar seu pênis, enquanto se contorcia obscenamente. Durante esse período fui estuprada duas vezes pelo‘Camarão’ e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, os mais grosseiros”.

Entre maio e agosto de 1971, permaneceu até agosto do mesmo ano, sob tortura, espancamento, choques elétricos e estupros. No inverno de Petrópolis, na região serrana do Estado do Rio, onde a temperatura podia chegar a menos de 10 °C, era obrigada pelos carcereiros a deitar nua no cimento molhado e levou tantas bofetadas que seu rosto tornou-se irreconhecível. 

Durante esse período, a militante da VPR tentou por quatro vezes o suicídio, sendo mantida viva por médicos contratados pelos militares, a fim de que a tortura, os interrogatórios e as possíveis confissões sobre organização prosseguissem. 

A partir de certo momento, ela foi informada de que sua tortura não era mais para conseguir informação, pelo tempo decorrido desde sua prisão ela já era inútil como informante, mas era apenas por sadismo, por conta do ódio que seu principal torturador, o então capitão Freddie Perdigão Pereira, (codinome:"Dr. Roberto") sentia dos guerrilheiros. 

Sua morte chegou a ser anunciada, o que motivou uma carta de seus pais ao então comandante do I Exército, general Sylvio Frota, solicitando a entrega de seu corpo.

Posteriormente, recebeu a proposta de tornar-se uma agente infiltrada da repressão nas organizações de guerrilha urbana, que aceitou para escapar dali. Para garantir que não seriam traídos, a fizeram assinar várias declarações acusando a própria irmã - que não tinha militância política - de subversão e a gravar um videotape em que se dizia agente do governo e recebia pagamento por isso. Tudo seria usado contra Inês em caso de traição. 

Mas ela só denunciaria seus torturadores anos depois, ao sair da cadeia.

Em 7 de novembro de 1971, ela foi presa oficialmente, o que a salvou da morte certa, e transferida para o Presídio Talavera Bruce, no Rio de Janeiro, onde cumpriria mais de oito anos de cadeia (estava condenada à prisão perpétua, que era prevista na lei brasileira)  sendo solta em 1979 durante a Anistia. A partir de então passou a militar pelos Direitos Humanos e pela memória dos mortos e desaparecidos nos porões da tortura.

Em 2003, um novo fato marcou a vida de Inês. Aos 61 anos, foi encontrada caída e ensanguentada em seu apartamento, com traumatismo cranioencefálico por golpes múltiplos diversos, depois de receber a visita de um marceneiro contratado para um serviço doméstico, precisando de cuidados médicos especiais. Em 2009 ela recebeu o Prêmio de Direitos Humanos, na categoria "Direito à Memória e à Verdade", outorgado pelo Governo Federal.

Inês morreu dormindo em sua casa em Niterói, aos 72 anos, onde morava, em 27 de abril de 2015. Sua saúde estava seriamente debilitada, com problemas cardiorrespiratórios.

Com informações do Huffing Post Brasil, do Blog Taqui Pra Ti e da Wikipedia.