sexta-feira, 17 de abril de 2015

Uma Nigéria Ecumênica

Um grupo de adeptos do Candomblé foi recebido pelo babalaô em um casebre aos pés do Palácio de Orumilá, em Ifé, antiga cidade iorubá, localizada no sudoeste da Nigéria. Nos dois cômodos cobertos por um telhado de zinco, chamaram atenção porta e janela fortemente protegidas com grades e cadeados. Ao perguntarem o que tal aparato de segurança protegia em uma morada tão simples, ouviram que naquela casa estava guardado importante segredo — mistério ritualístico do candomblé restrito aos que têm permissão para acessar o conhecimento. Foram informados ainda que o rei local — visto momentos antes ao lado de seu séquito em uma comitiva com dez Roll-Royces — nada fazia antes de consultar aquele senhor.

— Se você for à Nigéria com olhar ocidental, ficará em choque. As pessoas têm dificuldade de ler aquela riqueza. A simplicidade material não quer dizer miséria. Quando você se abre para compreender aquele universo, vê que maldade fizeram conosco, os descendentes de africanos. Tiraram a nossa identidade. Fomos afastados de uma sociedade que valoriza a sabedoria, o respeito ao mais velho, reverenciado por estar mais próximo dos ancestrais — afirma o babalaô Ivanir dos Santos um dos presentes na cena sucedida em Ifé, que já foi apelidada de “Roma Negra” e “Jerusalém Negra” por ser capital religiosa e artística do território iorubá na Idade Média. — Quem tem família italiana vai à Itália. Descendentes de portugueses, a Portugal. Os negros não tiveram esse direito de voltar para se identificar com o seu povo, sua cultura.

Desde 2005, Ivanir, de 60 anos, fez oito viagens à Nigéria, numa peregrinação que vem sendo repetida por outros adeptos do candomblé numa tentativa de resgatar laços com sua ancestralidade. No caso do babalaô, o caminho até o país teve escalas (não literais) em São Paulo, onde achou o pai depois de 40 anos de separação, na Bahia, estado em que conheceu a família paterna, e no Rio, onde reencontrou o babalaô nigeriano Jokotoye Bankole, além de muitas coincidências. Foi depois de restabelecer laços com a família no Brasil que o líder religioso, que é também interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), entendeu que a viagem ao país mais populoso do continente africano — dados de 2013 davam conta de quase 174 milhões de habitantes — era necessária.

— Reencontrei Jokotoye em 2004, seis anos depois de conhecê-lo em uma reunião, quando eu era subsecretário de Direitos Humanos e Cidadania. Ele me disse que eu tinha de ser iniciado na Nigéria, por 20 babalaôs — conta Ivanir, que chegou a hesitar viajar até ouvir de uma amiga próxima: “O desígnio de Ifá (sabedoria de Deus) acontece independentemente da sua vontade. Você tem de ir. Vai resgatar algo que um ancestre deixou lá para você e que só você pode pegar”.

Da primeira à última viagem, em fevereiro passado, o babalaô passou por cidades como Ogbomosho (onde foi iniciado), Ibadan e Koso, no estado de Oyo, Oshogbo e Ejigbo, no estado de Osun, e Lagos, além de Ifé. Todas as localidades ficam no Sudoeste da Nigéria, região iorubá. Diferentemente do que pode fazer parecer os atos terroristas da organização fundamentalista islâmica Boko Haram, mais atuante no Norte do país, a convivência entre as diferentes religiões é pacífica, e até misturada, assegura Ivanir.

— Vi um cristão indo para a igreja, com a Bíblia embaixo do braço, e duas esposas, cheio de filhos. Perguntei “Ué, mas não é cristão?”. Ele disse que a Bíblia condena o adultério, não a poligamia — conta Ivanir, explicando que, comum entre os adeptos de religiões tradicionais na Nigéria, a união conjugal de um homem com várias mulheres é adotada também por seguidores de outras crenças.

Segundo o babalaô, mesmo celebrações de outras religiões preservam características de rituais iorubás. Ao entrar num noivado evangélico ou numa cerimônia católica, por exemplo, um forasteiro pode ficar confuso.

— Você vê uma missa e parece uma macumba caprichada, tem até tambor. No seio das relações, nos costumes, na identidade, as pessoas respeitam as tradições. O ritos de nascimento, casamento e morte são realizados de acordo com elas.

Entre esses hábitos tradicionais, está a vida voltada para a família. Casas grandes, de até dez quartos, predominam nas cidades do interior, onde avôs, avós, mães, pais e filhos usualmente permanecem à noite, deixando ruas vazias, descreve Ivanir. Essas localidades são abastecidas por energia elétrica precariamente (segundo Agência Internacional de Energia, 93 milhões de habitantes do país não tinham acesso ao serviço em 2012) , tornando comum a instalação de geradores nas residências. Os equipamentos tornaram-se indispensáveis com a propagação dos aparelhos celulares que contrasta com a escassez de geladeiras.

A simplicidade caracteriza também as cerimônias do candomblé. Foi o que chamou atenção da dona de casa Glaucia Bastos, de 42 anos. Candomblecista e casada com um nigeriano, ela esteve no país três vezes, desde 2010.

— O nosso candomblé é o de lá com o acréscimo de mais elementos de luxo, o que é percebido pelo tipo de roupa que usam, por exemplo. Lá é mais simples, o que acho muito bonito — opina.

CULTO AOS ANCESTRAIS

Para Glaucia, as viagens à Nigéria foram o resgate da sua identidade, além de um contato com a ancestralidade.

— Na África, o ancestral é cultuado o tempo todo. Nesse tipo de viagem, você descobre porque seus antepassados passaram por certas situações, porque você pertence àquela família. Nunca nos conhecemos 100%, mas, quando conhecemos nossa ascendência, nos descobrimos. O que é uma forma de crescimento — teoriza.

O discurso é semelhante ao do pedagogo e babalaô Wladimir Valladares, de 46 anos. Criado em uma família de umbandistas, ele passou parte da vida afastado da religião depois de se aproximar do marxismo e da atividade política.

— Em 1989, tive um sonho cheio de significados. Logo depois, me disseram que eu tinha de fazer a minha iniciação e me aproximei mais da religião. Mas só 2009 Ifá determinou que eu tinha de me iniciar na Nigéria para resgatar a minha ancestralidade. Em 2011, viajei com Ivanir para Ogbomosho e fiz a minha redescoberta. Compreendi cada vírgula da minha vida, o porquê de dificuldades pelas quais passei, as lições que teria de apreender.
Entre os aprendizados oferecidos pela África, diz ele, está a inserção de práticas religiosas no cotidiano.

— Lá, não há divisão entre espiritualidade e costumes, o que tem a ver com a percepção circular da vida que se tem na África e no candomblé. O que aqui percebemos como prática litúrgica, lá é parte da vida. A própria aprendizagem do culto se dá de uma forma natural. Desde cedo, as crianças aprendem a importância de ajudar a família, respeitar os mais velhos e seguir determinadas regras — descreve.

Como outros adeptos do candomblé que têm ido à África em busca de suas origens, Valladares se refere às viagens não como ida, mas como volta:

— Por causa do histórico do negro no Brasil, a nós foi negada essa relação mais prolifera com as nossas origens. A ordem era: esqueçam a África. Mas acho que, devagar, vamos fazendo esse reencontro. Ao negro foi negado o que é mais sagrado para o ser humano: a ancestralidade. A religião acaba restabelecendo essa ligacçção. Me orgulho de cultivar práticas que eram dos meus antepassados.

Jornal O Globo